domingo, 10 de novembro de 2013

O despertar e o movimento de retorno


  • O movimento de retorno na vida de uma pessoa, o enfraquecimento ou a dissolução da forma, seja por meio do envelhecimento, da doença, da incapacidade, da perda ou de algum tipo de tragédia pessoal, contém um grande potencial para o despertai espiritual - o rompimento da identificação da consciência com a forma. Considerando o fato de que não há muita verdade espiritual na cultura contemporânea, poucas são as pessoas que reconhecem esses eventos como uma oportunidade. Assim, quando eles acontecem com elas ou com alguém próximo, sua crença é de que existe algo terrivelmente errado, alguma coisa que não deveria estar ocorrendo.

  •  Na nossa civilização existe um profundo desconhecimento da condição humana. E, quanto mais ignorantes somos em termos espirituais, mais sofremos. Para um grande número de pessoas, sobretudo no Ocidente, a morte não passa de um conceito abstrato. Assim, elas não fazem idéia do que acontece com a forma humana quando ela se aproxima da dissolução. Muitos indivíduos debilitados e velhos são trancafiados em asilos. Os cadáveres, que, em algumas culturas mais antigas, permanecem em exibição para que todos os vejam, são escondidos. Nos Estados Unidos e em outros países desenvolvidos, quem tenta ver um cadáver descobre que isso é virtualmente ilegal, a não ser que o morto seja seu parente próximo. Nas casas funerárias chega-se a maquiar o rosto dos defuntos. Só nos permitem ver uma versão limpa e bem arrumada da morte.

  •  Uma vez que a morte é apenas um conceito abstrato para essas pessoas, a maioria delas está totalmente despreparada para a dissolução da sua própria forma. Quando esse momento se aproxima, há choque, incompreensão, desespero e grande medo. Nada mais faz sentido porque, para elas, todo o significado, todo o propósito da vida estava associado a acumular, ter sucesso, construir, proteger e sentir-se gratificado. Ele estava vinculado ao movimento de saída e à identificação com a forma, isto é, com o ego. A maior parte dos seres humanos não é capaz de ver nenhum sentido quando sua vida, seu mundo, está sendo demolido. Mesmo assim, esse momento contém um significado potencialmente ainda mais profundo do que o movimento de saída.

  •  E precisamente com a chegada da velhice, com a vivência de uma perda ou de uma tragédia pessoal que a dimensão espiritual entra na vida das pessoas. Ou seja, seu propósito interior só aparece quando seu propósito exterior entra em colapso e a concha do ego começa a rachar. Esses acontecimentos representam o início do movimento de retorno em direção à dissolução da forma. Nas culturas mais antigas, deve ter havido uma compreensão intuitiva desse processo, e é por isso que os idosos eram respeitados e reverenciados. Eles eram os repositórios da sabedoria e ofereciam a dimensão da profundidade, sem a qual nenhuma civilização pode sobreviver por muito tempo. Na nossa cultura, que é totalmente identificada com o exterior e desconhece a dimensão interior do espírito, a palavra "velho" tem muitas conotações negativas, como obsoleto ou ultrapassado. Assim, consideramos quase um insulto chamar alguém de velho. Para evitar isso, usamos eufemismos como idoso ou antigo. Por que os velhos são considerados obsoletos? Porque na velhice a ênfase muda do fazer para o Ser, e nossa civilização, que está perdida no fazer, não sabe nada do Ser. Ela pergunta: "Ser? O que se faz com isso?" 

  •  No caso de algumas pessoas, o movimento de saída, do crescimento e da expansão, é interrompido de modo radical pela chegada aparentemente prematura do movimento de retorno, a dissolução da forma. Às vezes é uma suspensão temporária; outras vezes, permanente. Acreditamos que as crianças não deveriam ter que encarar a morte, no entanto o fato é que algumas delas têm que enfrentar o falecimento de um dos pais ou de ambos em razão de uma doença ou de um acidente - ou até mesmo a possibilidade da sua própria morte. Existem crianças que nascem com deficiências que impõem uma restrição severa à expansão natural da sua vida. Assim como há pessoas que se vêem diante de uma limitação grave quando ainda têm pouca idade.

  •  A interrupção do movimento de saída num momento em que isso "não deveria acontecer" também tem potencial para desencadear o despertar espiritual prematuro de uma pessoa. Afinal de contas, não acontece nada que não deva acontecer, isto é, tudo o que ocorre faz parte do todo maior e do seu propósito. Assim, a destruição, ou a ruptura, do propósito exterior pode levar uma pessoa a descobrir seu propósito interior e, em seguida, um propósito exterior mais profundo que esteja alinhado com o interior. As crianças que passam por muito sofrimento costumam se transformar em adultos jovens mais amadurecidos para sua idade.

  •  O que perdemos no nível da forma ganhamos no nível da essência. Na figura tradicional do "profeta cego" ou do "curandeiro aleijado" das culturas e lendas antigas, uma grande perda ou incapacidade no nível da forma converte- se numa abertura para o espírito. Quando alguém tem uma experiência direta da natureza instável de todas as formas, provavelmente nunca mais vai supervalorizar a forma e, assim, se perder por sua busca cega ou vincular-se a ela. 

  •  A cultura contemporânea está apenas começando a reconhecer a oportunidade que a dissolução da forma, sobretudo a velhice, representa. Em relação à maioria das pessoas, essa chance ainda é tragicamente ignorada porque o ego se identifica com o movimento de retorno da mesma maneira como se identifica com o movimento de saída. O resultado disso é um endurecimento da concha egóica, uma contração em vez de uma abertura. O ego diminuído passa o resto dos seus dias se lamentando ou se queixando, preso ao medo ou à raiva, à autopiedade, à culpa, a acusações ou a outros estados negativos mentais e emocionais ou a estratégias evasivas, como se apegar a lembranças e falar e pensar sobre o passado.

  •  Quando o ego não está mais identificado com o movimento de retorno da vida de uma pessoa, a velhice ou a proximidade da morte torna-se o que se destina a ser: uma abertura para o reino espiritual. Conheci idosos que eram personificações vivas desse processo. Eles haviam se tornado radiantes. A forma do seu despertar se tornara transparente à luz da consciência.

  •  Na nova Terra, a velhice será universalmente reconhecida e valorizada como um período para o florescimento da consciência. Para aqueles que ainda estiverem perdidos nas circunstâncias externas da vida, será o momento de uma volta ao lar tardia, quando irão despertar para seu propósito interior. No caso de outras pessoas, representará a intensificação e o auge do processo do despertar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário